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Para aqueles que estudam antropologia, a definição de cultura pode ser muito menos objetiva - e bem mais complexa - do que aquelas trazidas pelos dicionários. O escritor e pesquisador Raymond Williams dedicou alguns de seus trabalhos para entender esse conceito tão abstrato. Em A Long Revolution (1961), Williams defendeu que cultura é muito mais do que obras artísticas e intelectuais, mas uma vivência social, como os modos de falar, habitar o espaço ou de se relacionar, praticados por uma determinada comunidade. É a cultura que vai estruturar a vida coletiva de um grupo.
Em subcultura, o prefixo “sub” faz com que “cultura” tenha o sentido de algo nichado dentro de uma sociedade maior. No meio alternativo, subculturas são frequentemente associadas a movimentos underground em que seus membros compartilham políticas, ideais, gostos artísticos e moda. Outro termo conhecido no Brasil para definir as subculturas é o de tribos urbanas.
Essas tribos alternativas geralmente possuem um caráter subversivo, lutando contra preconceitos e conservadorismos de classes dominantes. Seus estilos e preferências - sejam eles artísticos, visuais ou políticos - fogem da norma hegemônica, fazendo com que muitas dessas comunidades acabem sofrendo julgamentos por seu caráter excêntrico. Além disso, a vivência na cultura muitas vezes torna-se um estilo de vida importante para as pessoas que participam do grupo.
Ao longo das décadas no Brasil, o gótico foi frequentemente associado a coisas demoníacas e, seus membros, considerados pessoas “esquisitas” que precisavam de um deus. Seus encontros, roupas, cabelos, músicas e arte receberam muitos olhares de julgamento dos conservadores ou daqueles que não entendiam muito bem o apreço pela arte e política daqueles jovens.
Mas membros de uma subcultura não se importam com tais juízos de valor, já que toda sua semiótica é justamente feita para chocar, pois essa é a maneira que eles encontram de se rebelar contra uma sociedade dominada por ideais conservadores e retrógrados.
Quando o goth tornou-se uma subcultura na Inglaterra dos anos 80, as bandas de pós-punk passaram a incorporar a estética gótica em seu visual, pois a sociedade britânica conservadora sempre detestou os decadentes filmes e livros do movimento gótico, considerando-os péssimas influências aos jovens.
As roupas pretas, a maquiagem chocante, os cabelos desgrenhados, a estética sombria e a melancolia inerente. Para a subcultura, cada um desses elementos possui um significado subversivo. Tudo é político. E tudo isso é gótico…
Capítulos
Descubra para onde o morcego deseja bater suas asas...
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Quando a escuridão passou a ter nome
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Antes de se tornar uma subcultura, a palavra gótico teve muitos outros significados. O termo deriva de godos, uma tribo germânica oriental que conseguiu conquistar uma parte do Império Romano e desempenhou um papel fundamental em sua queda. Eles eram considerados, pelos europeus, bárbaros e grosseiros. Dessa maneira, desde o início de sua existência, "gótico" sempre foi sinônimo de algo rústico, que incomodava padrões já estabelecidos.
Pulando alguns séculos, já na Idade Média, “godos” se tornou “gótico” e passou a denominar um estilo arquitetônico exuberante, etéreo e sombrio, que quebrava os padrões estéticos clássicos que os arquitetos e artistas conservadores admiravam. Posteriormente, a palavra gótico também ganhou espaço na literatura, em obras de romances com narrativas melancólicas e psicologicamente eletrizantes.


Godos (Évariste Vital Luminais) / Catedral de Colônia (Talita Cardoso)
Foi só no final da década de 70 e início da década de 80 que o gótico se tornou a designação para uma subcultura muito focada na música, estética e protesto social. Na época, a vertente do punk, pós-punk, começou a ganhar força no Reino Unido. As bandas com essa sonoridade costumavam usar vestimentas exóticas, lápis de olho e cabelos desgrenhados que chamavam a atenção.
Quando os jornais britânicos cobriam o som produzido pelos grupos através de análises, resenhas ou reportagens, os classificavam como melancólicos, sombrios e depressivos, criando uma associação com o gótico literário e cinematográfico, que possuía essas mesmas características.
Alguns dos artistas mais famosos por serem precursores desse movimento são The Cure, Bauhaus e Siouxsie and the Banshees. Mesmo quem não acompanha ou não participa do movimento gótico provavelmente já ouviu o trabalho de alguma dessas três bandas.
A forma como o adjetivo gótico foi utilizado ao longo dos séculos e a conotação da expressão é importante para compreender a política, a estética e os valores da subcultura. Desde a época de sua criação - lá nos anos 80 - até agora, a cena se expandiu, criando filosofias próprias, vestimentas e até tornando-se um estilo de vida. Tudo isso, é claro, com o foco no obscuro, melancólico e chocante.
Atualmente, a estética da cultura tem um forte apelo por elementos da Idade Média e da Era Vitoriana. Nas manifestações artísticas, é possível observar um romantismo sombrio, referências neoclássicas, obscuridade, decadência, melancolia, terror psicológico, medo, loucura e monstros sobrenaturais, como demônios, fantasmas, vampiros e bruxas. Além disso, a cena gótica vai muito além de aparências, sendo também uma subcultura de cunho político, com manifestações artísticas anticonsumistas e contra a discriminação de minorias.
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The Cure (Anton Corbijn) / Bauhaus (Stella Watts) / Siouxsie And The Banshees (Barry Schultz)
No vocabulário brasileiro, o termo gótico como definição de subcultura demorou para chegar no imaginário popular. A expressão mais usada em território nacional para definir aqueles que apreciavam a estética obscura até o final dos anos 80 era dark, que foi criada pelo jornalista Pepe Escobar. Na época, Escobar trabalhava para a Folha de S. Paulo e para a revista BIZZ ganhando bastante reconhecimento como crítico musical.
Aos poucos, a comunidade foi ganhando espaço e se popularizando na sociedade brasileira, com representações góticas em televisão aberta. A dramaturga Glória Perez, por exemplo, chegou a incorporar a cultura na novela De Corpo e Alma (1992). Na obra, o personagem Reginaldo Freitas (Eri Johnson) se considerava um gótico e tinha um crânio de estimação, um quarto sombrio de paredes escuras e usava roupas pretas e correntes.
Em uma cena da trama, cheia de sombras e enquadramentos que referenciam filmes do expressionismo alemão, Reginaldo chega em casa e assusta sua família com o visual excêntrico: “É que agora eu sou gótico”, ele exala com convicção, o que é respondido por seus familiares com um “Gótico? Isso não é catedral?”. Com essa comicidade, Glória Perez ressaltava a falta de conhecimento que muitos ainda tinham sobre a cena.
Apesar de trazer visibilidade para o movimento, a novela também recebeu críticas da comunidade pelo tom humorístico e caricato que o personagem carregava, já que isso acabava promovendo preconceitos em relação a uma subcultura que sofria diariamente com estereótipos.


Eri Johnson como Reginaldo Freitas (Jorge Baumann/Globo)
Entrada de Reginaldo em De Corpo e Alma (Reprodução/Globo)
Com o passar dos anos, o gótico se popularizou. Festas e encontros foram criados e ganharam mais frequentadores. Pouco depois, com a ascensão das redes sociais, a subcultura passou a se organizar e encontrar espaços para ela dentro do meio digital, criando um ambiente para compartilhar vivências e opiniões que se mantêm e se expandem até hoje.
Atualmente, é possível encontrar diversos influenciadores e grupos de góticos no TikTok, Instagram, Facebook e X. Ao mesmo tempo em que essas redes influenciam positivamente, fazendo com que mais pessoas se interessem pela cultura, a conheçam e se organizem, há também um lado negativo pela deturpação de conceitos políticos e ideais góticos criados no Reino Unido dos anos 80.
Catedrais em chamas
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Foi na arquitetura que o termo gótico foi usado pela primeira vez para definir um estilo artístico. No final da Idade Média, ele era usado para categorizar, de forma depreciativa, o estilo arquitetônico que a Igreja Católica passou a usar no período renascentista, que fazia ruptura com o estilo romântico até então prevalente na Europa.
Tal arquitetura foi febre na Europa entre os séculos XII e XVI. Originalmente ele era chamado de “Trabalho Francês” (Opus Francigenum), já que o país foi precursor da estética, com a construção de várias igrejas e catedrais entre os anos 1000 e 1400. Segundo a professora de história da arquitetura, Ana Paula Campos Gurgel, a abóbada nervurada, os arcobotantes e os arcos ogivais, que são os três elementos considerados principais para a arquitetura gótica, já existiam há muito tempo, mas juntar todos eles em uma única edificação foi uma novidade da França.
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Seção esquemática de uma catedral (Wikipédia)
O surgimento da burguesia e a queda do feudalismo contribuíram para a febre dessas construções tão exuberantes, já que o comércio começou a gerar lucro e estimular um ressurgimento urbano. “É por conta desse poder econômico que a burguesia passou a ostentar e investir em suas cidades através das muralhas, palácios e catedrais”, afirma Ana Gurgel.
Com o desenvolvimento urbano e o dinheiro desse novo grupo social, as oportunidades para que os arquitetos e pedreiros desenvolvessem projetos mais longos e maiores aumentou. As edificações góticas eram tão grandes e elaboradas, que algumas demoraram vários séculos para serem concluídas, como a Catedral de Colônia, na Alemanha, que levou cerca de 600 anos.
Mas o termo gótico para se referir a essas construções veio bem depois, quando o estilo começou a declinar e sair de moda. Gótico veio do adjetivo godos (ou visigodo) e referia-se a um povo germânico tido como bárbaro e grosseiro, que lutou e venceu contra a dominação romana no início dos anos 400.
Apesar dos godos não terem relação direta com a arquitetura, o pintor e arquiteto italiano Giorgio Vasari - considerado um dos primeiros historiadores de arte do mundo - em 1550 (período do alto renascimento na Europa), chamou esse tipo de construção de “gótico”, acreditando que ele fosse agressivo e feio em comparação com a arte clássica. Em relação a ascensão e queda do estilo, a arquiteta Ana Gurgel pontua: “os estilos arquitetônicos são uma espécie de ciclo, onde ora se valoriza mais uma característica A e outra uma característica B”.
A visão de Vasari era enviesada, vinda de uma época em que os valores clássicos eram recuperados, especialmente na Itália. “Ele é italiano e renascentista, então vai defender uma visão do mundo centrada no renascimento e colocar toda arte medieval como primitiva e dos bárbaros”, complementa.

Autorretrato de Giorgio Vasari de 1550 (Restauri Nicora)
Quem vê esses grandes castelos e igrejas imponentes, com tons neutros ou escuros, que se estendem até o céu e é quase impossível enquadrar em uma foto, pode acreditar que tais edifícios passam um ar sombrio. Apesar da subcultura gótica ser meio soturna e beber da estética desse estilo arquitetônico, ele na verdade foi criado com o propósito contrário de parecer amedrontador.
Em uma era estereotipada por sua escuridão, como a Idade Média, essas grandes construções foram desenvolvidas para ter uma iluminação natural mais presente, com seus grandes vitrais e elementos arquitetônicos marcantes, conhecidos por uma riqueza impressionante de detalhes.
A arquiteta Ana Gurgel ressalta que essa iluminação natural pode ser chamada de poética da luz, que cria uma ambientação etérea completamente oposta às igrejas construídas até então, que eram baixas e escuras.
Mas por que a arquitetura gótica só fez sucesso entre as igrejas? Acontece que, na época do auge desse estilo arquitetônico, a Igreja Católica também estava em seu apogeu e, por isso, a maior parte dos edifícios tinham intuitos religiosos. Entretanto também existem alguns castelos e construções residenciais que possuem a estética.
Por conta disso, grande parte dos edifícios arquitetônicos góticos icônicos são grandes catedrais europeias. A Basílica de Saint-Denis, na França, é um grande exemplo disso, pois é considerada a primeira construção do estilo gótico, desenvolvida por Abade Suger. Ana Gurgel explica que existia um certo orgulho burguês por trás de obras tão gigantescas. “Essa ideia de fazer construções cada vez mais altas era como uma competição entre as cidades, para mostrar que aquele burgo era mais importante, por isso ele deveria ter a igreja mais alta e mais bonita”.
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Basílica de Saint-Denis em 1655 (Claude Chastillon) / Basílica atualmente (Art Graphique & Patrimoine)
E o movimento gótico como estilo arquitetônico não surgiu de um dia para o outro. Na verdade, essa arquitetura evoluiu do estilo românico, que tinha arcos, abóbadas e pequenos vitrais, e os exagerou aumentando a magnitude das edificações, tentando criar estruturas que se aproximassem o mais perto possível do céu. Além disso, as paredes foram adaptadas para serem menos grossas.
Para uma construção ser considerada gótica, ela precisa ter sido construída na Idade Média e, além disso, possuir as características estruturais essenciais para o movimento.
A verticalidade das construções é a principal delas, com edificações alongadas e paredes finas, que proporcionam a possibilidade de construir diversas torres e andares com uma estrutura segura, além de sua simetria e exatidão em traços. “São as coisas mais altas que o ser humano construiu depois das pirâmides e antes do ferro com os arranha-céus”, explica a arquiteta Ana.
Os elementos decorativos são exagerados e ricos em detalhes, com adornos, decorações em portas, paredes, torres, escadarias e gárgulas no interior e exterior das construções. Além disso, as abóbadas góticas também são muito marcantes, com um formato de meio arco que davam sustentação às passagens, paredes e colunas. Essa estrutura já fazia parte de outros estilos arquitetônicos anteriores, mas na arquitetura gótica elas se tornaram ogivais, ou seja, a parte superior passou a ter uma ponta em cima, fazendo com que o meio delas parecesse maior.
Em relação às estruturas na parte externa das catedrais, as arcobotantes são muito presentes, com seu formato de meio arco que ficavam nos lados da construção para dar mais apoio e fortificação a ela.
Por fim, os vitrais da arquitetura gótica são muito grandes e eram colocados nas janelas que circundam as construções para aumentar a iluminação natural da luz do sol e decorar o ambiente com artes detalhadas que contam histórias e fazem referências a versículos e fatos bíblicos.

Planta da Igreja de Saint-Denis, na França, de 1705 (Jacques Chevillard)
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Obras-primas da arquitetura gótica que atravessaram os séculos...
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Hoje em dia, muitos não consideram as construções góticas como grosseiras e feias, como no passado foram adjetivadas. Essa mudança de pensamento acontece a partir do século XIX, quando o arquiteto francês Eugène Viollet-le-Duc passa a estudar os prédios importantes da França e o movimento gótico arquitetônico. Esse processo foi essencial para acabar com o preconceito criado pelo estilo.
Trazendo tudo isso para o cenário nacional, é possível afirmar que no Brasil não há arquitetura gótica, já que para ser considerado parte do movimento, as construções nesse estilo criadas por aqui teriam que ter sido edificadas na época do gótico europeu, contudo “O Brasil ainda não tinha sido invadido pelos portugueses”. Então, “o que existia no país nesse momento eram os indígenas e as suas construções vernaculares”, afirma Ana Paula Gurgel.
Entretanto, a influência de Eugène Viollet-le-Duc por volta do século XIX faz com que a arquitetura gótica volte a ser apreciada, dando surgimento ao neogótico. No Brasil, existem uma série de construções inspiradas nesse revival do gótico, como a Catedral da Sé em São Paulo, a Catedral de São João Batista em Santa Cruz do Sul e a Catedral de Petrópolis no estado do Rio de Janeiro.
Apesar de não ser propriamente parte da subcultura, a arquitetura gótica ainda tem grande importância para a comunidade, que utiliza dessa estética medieval como elemento para outras formas de artes, como cinema, e em suas expressões políticas.
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Difusão do gótico e neogótico ao redor do mundo
Escrituras de um mundo perdido
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Assim como a arquitetura, a literatura gótica também surgiu no contexto europeu. Dessa vez, na Inglaterra do século XVIII. Essa corrente literária recebeu esse nome porque as obras frequentemente eram ambientadas em lugares medievais, antigos e em ruínas. Além disso, suas características sombrias, decadentes e sensuais também contribuíram para o atributo gótico ser utilizado.
O movimento pode ser considerado um subgênero do Romantismo, muito inspirado nos romances medievais, mas focado em algo mais obscuro e indo contra ideais racionalistas. Esse estilo artístico é antissistema e retrata, mesmo que de forma sutil, uma Europa revolucionária, pois vai contra qualquer tipo de restrição do indivíduo, explorando os desejos mais profundos e reprimidos do ser humano.
A primeira obra considerada gótica foi O Castelo de Otranto (1764), escrito por Horace Walpole, que causou certa polêmica pelo tema sobrenatural em uma era em que a Europa passava por uma grande onda de racionalismo.
Entretanto, a moda pegou mesmo assim, e a popularidade do gênero cresceu, com diversos livros e histórias curtas sendo publicadas. Uma das autoras mais conhecidas em 1790 foi Ann Radcliffe. A romancista inglesa foi responsável pelo aumento da fama do movimento e é considerada um dos maiores nomes da literatura gótica. Os Mistérios de Udolfo (1794) é uma de suas grandes obras.
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Horace Walpole (Rosalba Carriera) / Ann Radcliffe (De Agostini Picture Library - G. De Vecchi)
Em outras partes do continente, além da Inglaterra, gêneros parecidos com o gótico também cresceram no coração europeu, mas com outros nomes. Na Alemanha, o termo usado para esses trabalhos era Schauerroman (romance de arrepiar). Já na França, noir francês.
Ainda na década de 1790, os contrastes caricatos, exageros, as ambientações e as características medievais começaram a saturar os leitores e muitos autores passaram a escrever sátiras utilizando os estereótipos góticos e referências de grandes obras do gênero. A famosa e renomada Jane Austen ofereceu sua contribuição com o romance satírico, publicado postumamente, Northanger Abbey (1818).
Mesmo que na Era Vitoriana os romances históricos tenham crescido, contos góticos continuaram a chamar atenção dos leitores. Edgar Allan Poe, nos Estados Unidos, é um dos maiores nomes do gênero no século XIX, com suas obras abordando o medo, a insanidade, a morte e a moral.
Outra figura icônica do movimento no século XIX é a escritora britânica Mary Shelley, conhecida principalmente pela obra Frankenstein (1818), que além de ser um dos livros góticos mais icônicos, é também um precursor da ficção científica. Seu estilo de escrita trazia elementos da própria vida de maneira fantasiosa e usava o gótico para explorar o desejo feminino reprimido e a moral humana. Em um século conhecido por ter os primeiros traços de movimentos feministas, como as sufragistas, Shelley também abordava em suas obras o papel feminino na sociedade de maneira crítica.
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Jane Austen (Cassandra Austen) / Edgar Allan Poe (Fotógrafo Desconhecido - Domínio Público) / Mary Shelley (Richard Rothwell)
Caminhando para o fim do século XIX, o gótico deixou de lado o estilo medieval e apostou em um cenário urbano abordando medos, questões éticas, sociais, tabus e a fragilidade mental do ser humano. O Retrato de Dorian Gray (1891) e O Médico e o Monstro (1886) são exemplos dessa fase.
E é impossível esquecer do Conde, um dos personagens mais famosos do gótico e que transformou a Romênia em um cenário estereótipo e clichê para a literatura vampiresca. Drácula (1897) de Bram Stoker também foi uma importante obra da época, e muito inspirado pela vampira Carmilla (1872) de Joseph Sheridan Le Fanu.
Ao longo das décadas, a literatura gótica foi influenciada por movimentos sócio-históricos e influenciou escritores. Sua popularidade cresceu e diminuiu, mas nunca foi inexistente.
Para Ana Paula dos Santos, Doutora em Teoria da Literatura e especialista em narrativas góticas, um dos principais fatores que colaboraram para a longevidade desse estilo é a ficcionalização de experiências negativas pelas quais os seres humanos estão suscetíveis independentemente da época em que vivem.
“Ela pode ser considerada transcultural e trans histórica, e passou por diferentes movimentos literários. Ela é atrativa porque é capaz de suscitar prazer estético por meio de emoções como o terror, o horror e a repulsa”, afirma.
Ainda, diferente de uma catedral que precisa ter sido construída em determinado momento histórico para ser considerada gótica, o gótico na literatura é “menos um estilo restrito a determinada época e mais uma poética que ofereceu a artistas os recursos literários para retratar o mais sombrio da existência humana: nossos vícios, nossas transgressões e, principalmente, nossos medos”, complementa a pesquisadora.



Dorian Gray (Eugène Dété) / O Médico e o Monstro (Charles Raymond Macauley) / Carmilla (Domínio Público)
E muitos autores famosos, mesmo que não sejam necessariamente considerados góticos, escreveram obras inspiradas por tais transgressões, como Charles Dickens e Fiódor Dostoiévski. Mas o que são esses elementos tão inspiradores que sobreviveram aos séculos?
A principal característica é em relação a ambientação dessas narrativas. Elas convidam o leitor a entrar em contato com o desconhecido através de cenários sombrios como castelos, torres, cemitérios, corredores escuros, florestas, casas velhas, restos arquitetônicos e montanhas isoladas.
Essas locações possuem espaços tortuosos e confusos, que desafiam a concepção de realidade de quem está lendo com a falta de uma descrição clara. Além dessas ruínas ressaltarem uma decadência da humanidade, elas também servem como metáfora para o poder da natureza sobre os seres da terra ao longo do tempo, como a morte e adoecimento.
Embora esse aspecto material da narração seja importante, tais histórias focam no terror psicológico e metafórico das personagens, deixando o terror físico e o medo de estar preso nesses lugares amedrontadores em um segundo plano (porém não inexistente). O terror apresentado não é algo sobrenatural, mas uma distorção da realidade, com vampiros que espreitam a noite ou personagens psicologicamente insanas, por exemplo.
Outro atributo presente nos livros góticos é o contraste. O bem e o mal frequentemente entram em embate e, às vezes, ambos apresentam-se na mente da mesma personagem. A dicotomia pode ser representada pela descrição de cenários diferentes um do outro, mas se expande a caracterização das personagens e ao tema das obras.
Ainda nessa questão de oposição, também é comum encontrar personagens caricatos que se contrapõem. Feminilidade idealizada contra crueldade patriarcal, sentimentalismo contra apatia, nobreza contra pobreza e violência contra honra.
Insanidade também é um tópico constante nesse tipo de literatura e é comum se deparar com personagens confusas, que não sabem se estão acordadas ou não. Os desejos e pensamentos reprimidos dão as caras através de estados de sonho, intoxicação ou alucinações.
Já em relação ao estilo de escrita, a progressão narrativa é monótona, mas não em um sentido ruim. Na verdade, ela apenas não possui um clímax demarcado com uma emoção forte. Ao contrário, os escritores góticos preferem uma tensão que se desenrola constantemente, deixando leitores em estado de alerta e desconforto permanente.
Outro aspecto do estilo é a irregularidade e a exaltação do considerado feio. Isso ocorre por meio de descrições exageradas e distorcidas daquilo que é grotesco.
E a relação do gótico com o cristianismo vai além das belas catedrais europeias erguidas. A literatura sombria também utiliza a estética da religião subvertendo símbolos conhecidos, como a vida eterna, por exemplo. Os vampiros são seres que atingiram esse ideal, mas na Terra, e vagam pelo mundo alimentando-se de sangue humano e tirando a vida de outros seres, como um deus que decide quem morre ou vive.
Entretanto, ao contrário da religião, que muitas vezes pode reprimir os seres humanos através de dogmas morais, o gótico se livra de proibições e acredita na liberdade total do ser para fazer o que quiser, incluindo coisas consideradas erradas socialmente.
O sobrenatural gótico pode ser perturbador e repulsivo por tentar se aproximar o máximo possível da realidade e não ser fantasioso. Essa realidade amedrontadora chega para os leitores através de obras que abordam temas humanos, como o sofrimento, a traição, o preconceito, o poder e os transtornos mentais com uma pitada de terror psicológico.
Mas a repulsa e desconforto criado pela narração é intencional e uma das principais características da arte gótica, que frequentemente aborda questões tabus para sociedade e temas pesados como forma de denunciar horrores vividos por alguns grupos sociais. A pesquisadora Ana Santos ressalta alguns exemplos, como o Southern Gothic, na literatura americana, que explora principalmente as problemáticas da colonização dos Estados Unidos abordando racismo, violência e escravidão.
Além disso, a doutora em Teoria da Literatura também chama atenção para o gótico feminino, que é “uma tradição que procurou retratar e denunciar os terrores e horrores próprios da condição feminina em sociedades patriarcais e misóginas, em que o homem é o principal inimigo da mulher”.
Já a literatura gótica do Brasil foca em temas como a colonização, vida na senzala, nobreza da terra, escravidão e ditadura. Apesar dos escritores nacionais terem se inspirado na narrativa gótica inglesa, Ana Paula dos Santos afirma que acredita “mais em um gótico brasileiro próprio do que em uma importação europeia”. Um grande exemplo nacional é Noite na Taverna (1855), do autor Álvares de Azevedo. O livro de contos góticos que aborda temas como traição, morte, luto, amor, vingança, tédio e outros sentimentos humanos.
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O quanto você sabe sobre a literatura gótica?
Escuridão através da lente
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Ao lado da música e da literatura, o cinema é uma das maiores representações da cultura gótica no meio artístico.
Antes de compreender como a sétima arte se encaixa na subcultura, é preciso compreender o verdadeiro significado de “cinema gótico”. Muitos podem considerá-lo um subgênero do terror e, apesar de não ser algo certo ou errado, resumir o cinema gótico a isso é muito simplista.
Mesmo que grande parte do cinema gótico seja composto por filmes aterrorizantes, existem também produções góticas de humor, como What We Do in the Shadows (2016) ou Meu Cunhado É um Vampiro (2023) e as semelhanças dessas obras com os filmes do terror gótico são os elementos apresentados na narrativa e na fotografia.
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What Do We Do In The Shadows (Divulgação - Amazon Prime) / Meu Cunhado é um Vampiro (Divulgação - Netflix)
Essa confusão em acreditar que o gótico está intrinsecamente ligado ao terror se dá ao fato de que a maior parte dos elementos góticos são comumente encontrados nos filmes de horror. Entretanto, existem diferenças significativas entre o terror tradicional e o gótico.
Apesar de ambos lidarem com medos culturais, representando a morte sempre à espreita, os perigos da vida, o medo e o desejo, os clássicos do terror tradicional utilizam o choque e o susto direto em sua narrativa, enquanto o gótico cria uma aura de suspense e estranheza, brincando com o medo através de jogadas de câmeras, iluminação e estética.
O gótico brinca com o psicológico ao invés de dar jumpscares em seus telespectadores. Além disso, se preocupa em criar uma atmosfera melancólica e de desconforto, mesclando a realidade com alucinações de mentes distorcidas.
Dessa forma, o gótico pode ser considerado um adjetivo ou atributo estético usado em conjunto com outro gênero, como terror gótico, romance gótico ou comédia gótica. Uma das principais características da subcultura é sua estética marcante e elementos visuais, que notoriamente se estendem ao cinema. Assim, o gótico nas telonas não é um gênero ou subgênero de algo, mas um modelo estético e narrativo.
Mas onde essa forma narrativa audiovisual começou? É importante lembrar que antes das imagens, vieram as palavras. Assim, a narrativa gótica surge primeiramente na literatura. Portanto, muitos dos filmes góticos são baseados em obras literárias de terror ou suspense, mas isso não é uma regra, já que eles também podem ser roteiros originais.
Os primeiros romances góticos começaram a aparecer nas telonas entre as décadas de 20 e 30 nas obras clássicas do expressionismo alemão, que brincavam com as sombras, luzes e maquiagens para criar ambientações esteticamente bizarras e desconfortáveis. Alguns dos exemplos mais famosos são Nosferatu (1922) e O Gabinete do Dr. Caligari (1920).
Posteriormente, a produtora americana Universal passou a fazer adaptações de clássicos góticos, como Drácula (1931) e Frankenstein (1931). Segundo Alessandro Yuri Alegrette, mestre e doutor em estudos literários e dono do canal no Youtube Canto dos Livros, onde produz conteúdo sobre cinema, quadrinhos e literatura, essa migração de produção para território americano se deu por conta da ascensão do fascimo na Alemanha. “Muitas pessoas que trabalharam na produção desses filmes [do expressionismo alemão] imigraram para os Estados Unidos [...] isso também vai influenciar o cinema norte-americano”, explica.
Já nos anos 40, Alegrette destaca a importância de Jacques Tourneur, diretor de Sangue de Pantera (1942) e A Morta-Viva (1943) que, apesar de não ser um diretor muito conhecido, utilizou da estética gótica em suas produções e influenciou grandes nomes do cinema estadunidense. “Alguns diretores de cinema vão emular um pouco o estilo dele. O Martin Scorsese tem um filme chamado Ilha do Medo com o Leonardo DiCaprio. O começo tem aquela parte enevoada que relembra um pouco a estética do Jacques Tourneur. E também O Farol do Robert Eggers”, conta.




Nosferatu (Reprodução) / O Gabinete do Dr. Caligari (Reprodução) / Drácula 1931 (Divulgação - Amazon Prime) / Sangue de Pantera (Divulgação - Mubi)
Uma década mais tarde, a Hammer Films se consagra como a maior produtora de filmes góticos de horror. Ela foi fundada na Inglaterra e, de acordo com Alessandro, foi essencial para a criação da concepção moderna do gênero horror. “Eles vão fazer as próprias versões do Drácula e do Frankenstein. São filmes que a gente vê um predomínio de cenas violentas, que inauguram de certa forma o chamado horror moderno, porque a violência é explícita”. Em suas obras, a empresa apostava em cores vibrantes e exploração de temas como sexualidade e sensualidade feminina. “Esse horror mais apelativo e explícito começa a partir da Hammer”, afirma Alegrette.
Ainda nos anos 60, o norte americano Roger Corman dirigia obras que se destacavam como cinema gótico por sua estética única e muitas adaptações de contos do escritor europeu Edgar Allan Poe. Sobre Corman, Alegrette ressalta seus “filmes com cores muito berrantes e uma violência explícita. Ele usa muito tons monocromáticos e muito vermelho”.
O famoso giallo (amarelo) italiano ganhou força nos anos 70. O subgênero de cinema ganhou esse nome por conta das capas amarelas comumente utilizadas nos romances policiais baratos vendidos no país. Aqui, as tramas geralmente giravam em torno da questão: “quem é o assassino misterioso?” e o protagonista é o responsável por resolver o crime, cometido de forma coreografada e exagerada. Muitos filmes “amarelos” foram inspirados no expressionismo alemão e exploram elementos da estética gótica, como a sexualidade reprimida, subconsciente, fetiches, traumas e delírios. Suspiria (1977) de Dario Argento é a obra mais famosa neste sentido.
Mais para o final da Era do Disco também houveram algumas adaptações de livros do Stephen King para as telonas que incorporaram elementos góticos. Carrie, a Estranha (1976) de Brian De Palma foi um sucesso, com uma bilheteria de mais de U$ 33 milhões de dólares. Afinal, quem não lembra da icônica garota loira completamente banhada de sangue? Além de Carrie, O Iluminado (1980) de Stanley Kubrick também abalou o mundo cinematográfico. Alessandro Alegrette ressalta que ambas as obras incorporam elementos góticos em suas narrativas e estéticas.
Já para os amantes do mito do vampiro, os anos 80 foram um prato cheio. Concomitantemente, a subcultura ganhava força no Reino Unido com o pós-punk, acabando por influenciar as obras cinematográficas da mesma forma que o cinema gótico das últimas décadas tinha influenciado os jovens em sua estética rebelde e melancólica. Em Fome de Viver (1983), é possível ver essa mescla de artes góticas logo no começo da obra, em que o vocalista da banda Bauhaus aparece cantando a famosa canção Bela Lugosi’s Dead. “O filme tem uma abordagem diferente do tema do vampirismo. Eles não têm presas e só saciam seu desejo pelo sangue. Tem um aspecto romântico”, ressalta Alessandro.



Suspiria 1977 (Reprodução) / Carrie, a Estranha 1976 (Reprodução) / Fome de Viver (Reprodução)
Ao longo dos anos, o cinema gótico se expandiu e se modificou, mas mantendo sua essência, elementos estéticos clássicos e utilizando metáforas para representar os medos e ansiedades da população atual. Os diretores sempre mantiveram suas inspirações em obras antigas, mas criando sua própria forma de conduzir a narrativa dentro dos elementos góticos.
Como toda arte, o cinema gótico também é político, mesmo que muitas vezes as críticas e tópicos abordados sejam de maneira discreta ou metafórica. A questão do gênero é frequentemente retratada de forma questionadora. As mulheres são retratadas como objeto de desejo ao mesmo tempo em que são vilanizadas, vistas como loucas e paranoicas. Na maioria dos casos, isso é feito de forma crítica, mas - principalmente no cinema gótico mais antigo - é possível notar visões verdadeiramente machistas, como em alguns filmes do controverso Hitchcock.
A sexualidade como orientação é abordada principalmente em filmes sobre o mito do vampiro. As identidades queer são exploradas como desejos reprimidos e a figura de monstros representa orientações que fogem da norma conservadora.
Por fim, a racialidade é retratada de duas maneiras principais: o estrangeiro e a imigração, presentes majoritariamente em filmes góticos mais antigos, e o racismo estrutural, em produções mais recentes. A figura do estrangeiro e do corpo racializado, assim como das pessoas LGBTQIA+, também é retratada de forma monstruosa e com muitos estereótipos. Um grande exemplo é a figura de Drácula, o conde do Leste Europeu que busca uma casa para morar no centro de Londres e assombra os britânicos. Já em filmes contemporâneos, como Corra! (2017), é possível ver uma apropriação da estética gótica para criar uma narrativa que critica o racismo e o fetichismo racial pelos brancos americanos.
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Rebecca, a Mulher Inesquecível (Reprodução) / Entrevista com o Vampiro (Reprodução) / Corra! (Reprodução)
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Os 6 pilares da estética gótica no cinema
Mas para resumir: Quer dizer que o que define uma produção audiovisual como gótica são os elementos presentes na narrativa? Exatamente! Mas o que são esses elementos ao certo?
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E se engana quem acredita que o cinema gótico é algo exclusivamente europeu ou norte americano. Apesar da subcultura ter surgido no velho continente, o Brasil também possui sua pequena, mas expressiva, representação sombria na sétima arte.
Uma das figuras mais importantes deste estilo artístico nas telonas brasileiras é José Mojica Marins. Esse nome não te lembra ninguém? Isso é porque Mojica ficou conhecido nacionalmente como Zé do Caixão. Aquele homem com unhas longas e um jeito peculiar de se vestir, que foi amedrontador para muitas pessoas entre as décadas de 60 e 80, é a maior representação gótica do cinema nacional.
Nascido em 13 de março de 1936, Mojica era filho de imigrantes espanhóis e seu famoso personagem apareceu pela primeira vez no filme A Meia-Noite Levarei Sua Alma (1963). Na trama do personagem, que depois se estendeu para vários outros filmes de sua cinematografia, Zé do Caixão é um agente funerário sombrio, de unhas longas e olhar profundo. O maior objetivo dessa figura é encontrar a mulher perfeita para gerar um filho imortal.
O personagem incorpora grandes elementos do gótico, como o niilismo, a amoralidade, o sadismo e uma obsessão pelo mórbido. Zé do Caixão é elegante e representa uma figura obscura adaptada para o cenário e tradições brasileiras. Seus visuais são similares a figuras góticas europeias, como Drácula e Nosferatu. “Ele vai pegar todos os elementos do gótico, do cinema gótico de horror, e vai adaptar isso para a cultura brasileira”, comenta Alessandro Alegrette.
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Zé do Caixão (Divulgação - Reprodução)
Apesar de Zé do Caixão ser praticamente um sinônimo de horror gótico nacional, existem outras obras brasileiras com elementos obscuros, muitas delas derivadas da famosa “boca do lixo”. Ela era uma região localizada nos bairros de Santa Ifigênia e Luz, em São Paulo. O nome se deve fato de que, na década de 50, a área era marcada por prostituição, bares, hotéis baratos e uma vida noturna agitada.
Mas a história do local com o cinema começou muito antes, na década de 20, quando grandes produtoras se instalaram por lá, como a Paramount e a Fox. Entretanto, lá pelo final dos anos 60, o local desvalorizou e tornou-se um ambiente expressivo para o cinema independente, com diversos técnicos, produtores e distribuidoras independentes se instalando por lá.
As produções tinham baixo orçamento e, muitas das vezes, vinham com muitas críticas sociais. Entretanto, muitas das obras exploravam temas que buscavam chamar a atenção do público através de histórias de sexo, violência, crime, política e sobrenatural. Na maioria das vezes, isso era feito através da exploração do corpo feminino. “São filmes apelativos, que vão fazer uma mistura de elementos de terror com erotismo e nudez”, explica Alessandro.
Além dos filmes de Mojica, alguns diretores que flertaram com o gótico na boca do lixo foram Ivan Cardoso com As Sete Vampiras (1986) e Jean Garrett com A Mulher que Inventou o Amor (1970).
Fora do cenário independente criado pela boca do lixo, outro diretor nacional que tem algumas obras com elementos góticos é Walter Hugo Khouri. Nascido em 1929, o cineasta paulistano explorava temas psicológicos e existencialistas em seus filmes. Em O Estranho Encontro (1958) e O Anjo da Noite (1974), ele utiliza alguns elementos góticos, como personagens ambíguos, em crise e uma estética sombria e teatral, mesclando-os ao cenário urbano brasileiro.
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As Sete Vampiras (Cinemateca Brasileira) / A Mulher Que Inventou o Amor (Reprodução) / O Estranho Encontro (Reprodução)
No passado, a maioria dos filmes brasileiros de estética gótica eram apelativos e exploravam o corpo feminino. Com o passar dos anos, obras que abordavam - ainda mais - questões sociais, como gênero, classe e raça começaram a ser dirigidas por novos nomes do cinema nacional.
A virada do milênio não trouxe nenhum bug, mas mais diretores brasileiros que exploram a estética gótica. Um deles é Marco Dutra, com obras que contém suspense psicológico com crítica social de classe e exploram elementos da estética gótica mesclados ao cenário brasileiro. Formado em cinema na ECA-USP, fez alguns filmes em parceria com Juliana Rojas, sua colega de curso, como O Lençol Branco (2004), Trabalhar Cansa (2011) e As Boas Maneiras (2017).
Rojas é um grande nome do cinema brasileiro e já trabalhou em produções da Netflix como roteirista, como 3% (2016) e Boca a Boca (2020). Apesar de ter uma grande carreira no audiovisual, alguns de seus filmes - como O Duplo (2012) - possuem claros elementos estéticos da arte gótica como morte, repressão de desejos, espaços em ruínas, claustrofobia, monstruosidade, maternidade, e o sobrenatural. Além disso, Juliana trabalha com figuras femininas complexas e explora questões de classe e gênero.
Além da parceria com Juliana, Marco Dutra também já dirigiu ao lado de Gabriela Amaral Almeida. Quando Eu Era Vivo (2014) teve participação de atores que são grandes nomes da mídia brasileira, como Antônio Fagundes e Sandy.
Gabriela também tem seu nome em destaque nas produções de horror brasileiras que exploram uma estética gótica. A cineasta tem um estilo inspirado por Stephen King e leva a estética gótica além dos tradicionais castelos e ambientes nebulosos. Suas obras também são psicológicas, com personagens femininas traumatizadas e delirantes e o uso do macabro como uma crítica social. Alguns destaques da cineasta são O Animal Cordial (2018) e A Sombra do Pai (2018).




O Lençol Branco (Reprodução) / As Boas Maneiras (Reprodução) / O Duplo (Reprodução) / Quando Eu Era Vivo (Reprodução)
Sobre os três diretores, muito associados ao horror social brasileiro, e o cenário do cinema gótico nacional contemporâneo, Alessandro Yuri Alegrette comenta: “Essa geração de cineastas vai visitar todo esse cinema gótico e essa estética e procurar criar algo novo e diferente. Acho que isso é algo legal sobre eles. Sempre procuram criar um novo olhar sobre aquilo e relacionar com a cultura brasileira e os problemas que existem no país”.
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Em cartaz para conhecer a estética gótica!
A subcultura surge de um riff contra a opressão
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Apesar de outras expressões artísticas góticas existirem a muitos séculos, a música pós-punk do Reino Unido da década de 70 e 80 foi o pontapé inicial essencial para que o gótico fosse muito mais que um estilo estético, mas uma subcultura política consolidada.
Para compreender melhor esse cenário, é importante voltar um pouco à história e analisar o contexto histórico e político do Reino Unido da época.
Você provavelmente já ouviu falar sobre Margaret Thatcher. A primeira-ministra, apelidada por um jornalista soviético como Dama de Ferro, governou o Reino Unido entre 1979 e 1990 e foi a figura principal do governo conservador que ganhou força no país na época. Suas políticas abrangiam privatizações de estatais e redução do poder dos sindicatos.
Como resultado, a economia britânica sofreu graves danos. De acordo com o Instituto Nacional de Estatísticas Britânico, o número de desempregados em 1983 ultrapassava os três milhões.
“O Reino Unido era um lugar miserável para se viver em meados dos anos 80”, dispara Julianne Regan. Jornalista, na época do ápice do movimento gótico ela foi vocalista da banda All About Eve, formada em 1984. “Minhas memórias relacionadas a esse período incluem a ameaça de guerra nuclear, Margaret Thatcher, desemprego em massa e um tédio insuportável. Não havia internet, os videogames estavam em seus primórdios e havia apenas três canais de TV.”

All About Eve (Divulgação)
Com um cenário político nada próspero e o conservadorismo em alta, a juventude da classe trabalhadora do Reino Unido passa a protestar através da arte. O punk mostrava seu descontentamento por meio de uma estética brutal e revoltada, apostando em uma moda disruptiva que satirizava símbolos de opressão - como uniformes militares, letras ácidas, guitarras pesadas e energéticas e técnicas musicais despretensiosas que reforçaram a ideia de igualdade e que qualquer um poderia fazer música.
Sobre o cenário político e as influências nos movimentos artísticos da época, a jornalista afirma: “Muitos jovens se sentiam desencantados, descartados e invisíveis, e talvez por isso quisessem ser vistos e ouvidos com tanto desespero [...] Era uma época cinzenta, e as pessoas queriam cor.”
Além disso, a busca por sua própria identidade era uma maneira dos jovens encontrarem seu próprio grupo social e criarem conexões em uma era antes das redes sociais. “Se você olhar para alguém hoje, na adolescência ou na casa dos vinte anos, nem sempre consegue dizer de que música ele gosta. Na década de 1980, isso era óbvio. Os jovens pareciam estar em busca de sua tribo. Sem as mídias sociais, fazer conexões era mais difícil. Tinha que ser feito pessoalmente e tinha que haver atalhos, tinha que haver pistas sobre quem uma pessoa era, e o primeiro sinal disso era sua aparência, que dava uma indicação de qual música ela gostava”, complementa Julianne.

Punks em Morecambe (Rainer Theuer) / Punk alemão no Dia do Caos (Domínio Público) / Dois punks britânicos (Domínio Público)
E se do desespero surgiu a desesperança e da desesperança o punk, do punk surgiu uma derivação que se tornaria gênero próprio: o pós-punk gótico. Assim como o punk em si, o gótico também ganhou força primeiramente com a classe trabalhadora britânica, já que também expressavam sua insatisfação com a economia e a vida na Grã-Bretanha. Entretanto, ao invés de um visual pesado, os góticos apostaram em uma moda soturna, andrógina e com muito preto.
Assim como o punk, o amadorismo e o underground era valorizado no gótico, mas ao invés de músicas pesadas, os músicos góticos gostavam de criar ambientações sombrias através de harmonia e timbres, que refletissem de forma artística o conteúdo de suas letras e mostrasse o pessimismo, repressão e o medo que permeava-se entre os jovens por conta das situações sociais e econômicas do país, mas por motivações além disso, como as ansiedades e tensões da Guerra Fria e tragédias cobertas de forma sensacionalista pela mídia.
Para Julianne, que também compunha músicas para a banda em que cantava, “o pós-punk era muito mais inteligente e bem pensado, tanto em termos de letras quanto de som. O pós-punk parecia aproveitar a liberdade que o punk havia criado e aprimorá-la com algo mais sofisticado”.
Essa estética decadente, sombria e nostálgica era muito inspirada em literatura e cinema góticos. Algumas bandas eram nomeadas como referências a filmes do movimento gótico, como Siouxsie and the Banshees, em referência ao filme Cry of the Banshee de 1970, e The Cure (em referência ao filme O Gabinete do Dr. Caligari de 1920). Isso fez com que jornais britânicos da época nomeassem as bandas que produziam músicas no estilo de góticos de forma pejorativa. O nome pegou e a subcultura nasceu, se desvencilhando definitivamente da subcultura punk nos anos 80.
Essa apropriação de elementos góticos não foi simplesmente porque os músicos achavam que seria divertido. Além da forte melancolia representar as dores e os medos dos jovens britânicos em relação ao futuro, os elementos góticos foram escolhidos como forma de protesto contra a sociedade conservadora em que estavam inseridos.
Regan relembra que, mesmo que as músicas não falassem de forma direta sobre os problemas sociais pelos quais a Inglaterra passava na época, os cenários góticos sombrios eram utilizados como uma metáfora para o estado de espírito da juventude. “Não consigo identificar nenhuma política social nas letras [da banda The Cure], mas os álbuns Seventeen Seconds e Faith certamente têm uma qualidade sobrenatural, onírica e misteriosa. Novamente, como isso refletia a sociedade da época, não tenho certeza, mas acho que repercutiu entre os jovens descontentes. Certamente repercutiu em mim”.



Gótica (Marc Planard) / Siouxsie Sioux nos anos 80 (Domínio Público) / Robert Smith do The Cure nos anos 80 (Domínio Público)
Filmes e livros góticos clássicos nunca foram apreciados pelo conservadorismo inglês, sendo considerados até mesmo uma má influência para a juventude. Abraçar essa estética foi como atacar os princípios da classe dominante, utilizando uma arte considerada decadente e com um clima de pavor como inspiração para criar clima e sons.
A utilização da arte gótica como inspiração musical era orgânica e muitas vezes proposital, outras vezes era uma consequência de um estado mental angustiado dos músicos. Julianne Regan comenta que, apesar do All About Eve não se prender a fazer tudo sobre a banda girar em torno de referências góticas, eles tiveram certa inspiração dessa forma artística, principalmente no início da carreira musical. “Não tenho muita certeza do sucesso com que a arte gótica foi incorporada ao All About Eve, mas certamente foi uma influência nas primeiras músicas. Na primeira que lançamos, D For Desire, escrevi sobre um poeta manchado de sangue. O título da música vem de uma cena de um filme chamado Ghost Dance, dirigido por Ken McMullen”.
A arte gótica, seja nos livros ou filmes, tipicamente foca em mostrar cenários em ruínas e personagens instáveis, com sobrecarga emocional. Na música, esse desespero e sensação sufocante é gerada através dos instrumentos, das músicas que mantêm uma tensão constante sem muitas variações de notas e da teatralidade agressiva, sensual e desconfiada. As estruturas de poder eram frequentemente desafiadas com uma mistura de humor ácido e terror.
Nas canções, a presença do vocalista é essencial para fazer o público sentir a história contada pela música através de suas performances, com letras dramáticas, angustiantes e vulneráveis. Os cantores masculinos comumente cantavam em tons mais graves e as femininas de forma etérea e expressiva.
As vozes eram acompanhadas por instrumentais que conseguiam acompanhar a narrativa e que muitas vezes pareciam inspiradas em orquestras e trilhas sonoras de filmes de terror. Efeitos de distorção e reverberação nos instrumentos elétricos eram essenciais para passar um ar fantasmagórico.
Composições tinham uma natureza experimental e amadora, com a liberdade de não se preocupar em fazer tudo perfeitamente harmonioso e intelectual como no mainstream.
“Foi uma época de reverberação e eco, efeitos, tanto no ao vivo, por meio de gravações caseiras, quanto nas gravações de estúdio. Chorus, flanger, phaser e delays digitais faziam parte do arsenal. Essas eram as ferramentas que as bandas que eu ouvia usavam”, relembra Julianne.

Filme Ghost Dance (1983), inspiração da música D for Desire (Reprodução)
E todo esse clima sombrio e underground criado por vários fatores complementares era amarrado pela iluminação, maquiagens exageradas, cabelos bagunçados e roupas sombrias, com os artistas tocando esbanjando expressões faciais vazias e indiferentes.
Não existe gótico sem pautas sociais e protesto contra o conservadorismo, mas a luta dos góticos ia além das instituições de poder e do governo vigente. Em uma década em que a performance de masculinidade estava em alta, a subcultura passou a subverter papéis de gênero, com cantores masculinos exalando androginia e emocionalismo.
Essa aversão por homens em posições de fragilidade andava lado a lado com a homofobia, que se elevou durante o governo de Thatcher e com a desinformação e preconceito em volta da epidemia de HIV.
Sobre a questão de gênero e sexualidade, Julianne relembra que, apesar do tabu ser muito forte na época, os clubes alternativos eram um espaço geralmente mais seguro para quem quisesse se expressar além dos padrões heteronormativos: “A cultura das casas noturnas e shows permitia que as pessoas fossem elas mesmas, e isso incluía sua aparência e sua sexualidade. Ainda havia riscos, mas em espaços seguros, como casas noturnas alternativas e shows, as coisas geralmente eram relaxadas e agradáveis”.
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Bauhaus em She's In Parties (Reprodução) / Siouxsie And The Banshees em Cities In Dust (Reprodução) / Fields of the Nephilim em Moonchild (Reprodução)
Apesar do pensamento retrógrado sobre masculinidade e sexualidade, o feminismo na Grã-Bretanha da década de 70 e 80 ganhava muita força com mulheres que, através de diversos movimentos, lutavam contra desigualdade salarial, direito a métodos contraceptivos e aborto seguro.
Dessa forma, o feminismo envolvido na subcultura foi crucial para que a melancolia, histeria e insanidade, sentimentos associados às mulheres de forma pejorativa, se alinhassem e fossem apropriados pela cultura gótica. Várias letras satirizavam o poder masculino da época, como uma das músicas mais conhecidas do movimento, Boys Don’t Cry do The Cure.
Já as bandas femininas, usavam sua sensualidade para exaltar o lado forte e sedutor das mulheres. Suas letras, além da melancolia clássica do gótico, chamavam a atenção para temas importantes, como a ligação do patriarcado com a exploração sexual, o estupro e o abuso infantil.
As características estéticas da arte eram igualmente indispensáveis. Em seus videoclipes, as bandas passavam um sentimento underground, tocando em cenários urbanos e industriais com neblina ou chuva, que davam uma aparência noir dos filmes góticos clássicos.
Essa tribo, que quebrava tantos padrões estéticos, paradigmas e lutava contra um sistema opressor, era alvo frequente de preconceitos e agressões verbais e físicas. “Na minha juventude, lá pelo início e meados dos anos 80, fui chamada de esquisita, vadia ruiva e gótica patética. Felizmente, nunca precisei enfrentar qualquer tipo de violência física, mas o mesmo não pode ser dito de Sophie Lancaster”. A história da jovem Lancaster, citada por Julianne, é trágica. Ela e o namorado estavam caminhando em Lancashire quando foram brutalmente atacados apenas pelo jeito único e artístico de se vestir. Aos 20 anos, a jovem gótica perdeu a vida.
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Sophie Lancaster (Lancashire Police/PA e Sylvia Lancaster)
Mas não era só de rock e punk que a música gótica sobrevivia, o darkwave e o new wave também eram muito apreciados pela subcultura, misturando os elementos sombrios e melancólicos a sintetizadores e batidas mais dançantes, dando um ar tecnológico as músicas.
Atualmente, a cultura gótica musical não morreu, muito pelo contrário, ela se mantém viva e, com o passar das décadas e a evolução das tecnologias musicais, incorpora cada vez mais elementos. “A definição do que é música gótica pode ter se tornado mais nebulosa e vaga. Você pode chamar o And Also The Trees de pastoral goth ou até mesmo folk goth. Há a confusão entre onde acaba o gótico e começa o shoegaze. Existe algo como shoegoth?”, brinca Regan.
Apesar do pós-punk representar as raízes da subcultura, outras variedades, vertentes e estilos musicais também são englobados por ela, já que sua estética e temática, como o existencialismo, sofrimento, morte e melancolia, podem ser incorporados em várias sequências rítmicas.
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Os gêneros e subgêneros na música gótica
Apesar de algumas bandas se encaixarem mais em uma sonoridade do que em outra, é importante destacar que esses gêneros são fluídos e alguns desses artistas criaram músicas com vários estilos ao longo de suas carreiras.
Pós-punk
É o ritmo que originou a subcultura. Surgiu no final dos anos 70 e foi uma evolução teatral, melancólica e sombria do punk rock. Através de seus elementos experimentais, atmosferas pesadas, letras reflexivas e inúmeras referências a outras obras artísticas góticas, ele é considerado a base de toda a comunidade. Seu som inclui guitarras ambiente e um baixo bem marcado.
Artistas referência: Joy Division, The Cure, Siouxsie and the Banshees & Gang of Four
Ethereal wave
É um subgênero do darkwave, mas com uma energia mais etérea, com vocais delicados e sonhadores, guitarras com delay e acústicas, piano, variações de sintetizadores e uma ambientação que soa tão sonhadora que parece celestial. Além disso, as letras são introspectivas e há uma sobreposição aos estilos dream pop e shoegaze.
Artistas referência: Cocteau Twins, Autumn's Grey Solace & Love Spirals Downwards
Gothic Rock
Gênero que evoluiu do pós-punk no início da década de 80 destacando ainda mais o lado sombrio da subcultura. Sua sonoridade tem características de melancolia e uma sonoridade sombria. No som, são comuns guitarras com reverb, vocais dramáticos, acordes menores e um ritmo lento. Além disso, ele aborda temas como morte, mistério e romantismo soturno.
Artistas referência: Bauhaus, The Sisters of Mercy, Fields of the Nephilim & Christian Death
Industrial / Electronic Body Music (EBM) / Electro-goth
Com um som eletrônico agressivo, esses estilos combinam batidas mecânicas, sons fortes e vocais com distorção. O industrial apresenta um caráter experimental, enquanto o EBM é dançante e o electro-goth é aquele que mais une o eletrônico às características visuais do gótico.
Artistas referência: VNV Nation, Front 242, Das Ich & Skinny Puppy
Darkwave
Também originado na Europa dos anos 80, esse estilo mistura a melancolia do gothic rock a sintetizadores e outros elementos eletrônicos do synth-pop. Com tons mais graves, os cantores apresentam letras sombrias e introspectivas, explorando emoções humanas como o medo, a solidão e o romantismo triste. Por vezes é dançante e em outros momentos mais frio.
Artistas referência: Molchat Doma, Mareux, Clan of Xymox & Diary of Dreams
Deathrock
É através da estética teatral sombria e das referências ao cinema de terror que o death rock vai se construindo. Ele mistura o horror punk com o gothic rock, criando letras que abordam a morte, sadismo, decadência humana e o grotesco. O baixo marcante e a guitarra meio mórbida tornam esse gênero menos romântico do que os outros que se encaixam na subcultura, preferindo apostar no lado maníaco e ameaçador da existência.
Artistas referência: 45 Grave, Kommunity FK & Specimen
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No Brasil, essa tribo chegou através de influências musicais no início dos anos 80, mas foi só por volta da década de 90 que os góticos começaram a repercutir nacionalmente através da grande mídia por meio de novelas e filmes.
Ao contrário da cultura gótica do Reino Unido, que surgiu nas camadas mais pobres da sociedade, os participantes da subcultura no Brasil apresentavam condições socioeconômicas da classe média alta. Na pesquisa Relatos etnográficos à meia-noite: o universo estético dos góticos na cidade de São Paulo de Wilma Regina, publicado em 2006, a autora sintetiza que a maior parte dos jovens da capital paulistana que se consideravam góticos estudavam nos melhores colégios, idiomas, tinham o hábito da leitura clássica e já tinham viajado ao menos uma vez para fora do país.
Adriana é um caso a parte do perfil classe média alta dos góticos brasileiros dos anos 90 traçado por Wilma Regina. Gótica há mais de 30 anos e conhecida como Ana Cranes na subcultura, ela mora na periferia de São Paulo e se interessou pelo gótico aos 15 anos para se aproximar de um rapaz que conheceu na época. “Acabei me apaixonando pelo estilo. Desde então a subcultura faz parte da minha vida, a origem de trabalho, amizades, relacionamentos e bagagem cultural. Na época não existia internet, pra poder saber ‘o que é gótico’ eu tive que sair do extremo sul de São Paulo e me dirigir até a Galeria do Rock, mas acabei entrando na galeria presidente e, além de descobrir o que era gótico, eu arrumei um emprego numa loja de disco e fiquei uns 6 anos”, relata.
Em relação ao preconceito sofrido na época, Ana comenta que era muito forte. Para os homens, o visual excêntrico chamava a atenção de homofóbicos. “Dependendo onde a pessoa morava, ela não saia com o visual de casa. Principalmente maquiagem e cabelos, que eram feitos nos botecos perto das festas. Muitos só se sentiam seguros no centro de São Paulo, pois fora dele podiam apanhar”. Em relação às mulheres o assédio era constante e até mesmo alguns membros homens da subcultura não as considerava boas moças para casar. “Nós góticas temos liberdade sexual, mas isso criou um estigma na sociedade de que somos fáceis, quando na verdade somos livres”, afirma.
Homossexualidade e liberdade sexual feminina eram questões bem aceitas na comunidade, mas Ana Cranes também aponta algumas incoerências nisso, já que existiam algumas pessoas machistas e homofóbicas que diziam fazer parte da subcultura. “Isso chega a ser um contrassenso, pois a sociedade via os homens góticos como menos masculinizados. Tive amigos que apanharam de pessoas aleatórias nas ruas por acharem que eram gays”, declara.
Pessoas conservadoras que se declaram góticas não são uma realidade passada, já que elas existem até hoje. Entretanto, os ideais góticos não dão espaço para preconceitos no geral. Para Stef, que é gótica da geração da internet e mantém o canal salviarain no Youtube para debater temas góticos, “pessoas ruins existem, infelizmente, mas a subcultura em si é acolhedora para grupos discriminados. O gótico é muito feminino, e também é muito gay, o que não falta dentro da cena são artistas LGBTQI+. Eu diria que essa comunidade carregou e ainda carrega a cena gótica nas costas”.
Entretanto, ela ressalta a falta de representatividade racial na comunidade, afirmando que existe “pouca diversidade quando se trata de ícones góticos [negros]. Porém, as redes sociais vêm ajudando muito nesse sentido. Hoje em dia você encontra referência visual para pessoas de todos os tons de pele, tipos de cabelo e bagagem cultural. É fascinante acompanhar essa diversificação da subcultura”.
As falas de Ana e Stef mostram que, apesar dos ideais góticos serem acolhedores com todos, a subcultura ainda não é perfeita nesse sentido, principalmente na questão racial. Bruna Souza, que também mantém um canal no Youtube destinado a discutir temas sobre a comunidade gótica, comenta que: “Quando falamos sobre a história da subcultura e tudo o que eles lutam é algo muito bonito. Eles acolhem todos independentemente da cor, raça e religião. Só que na prática, nós vemos que não é assim que funciona”. Ela relata que no passado já sofreu preconceito de uma amiga conhecida na internet dentro da subcultura “Ela se dizia gótica de direita e depois foi racista comigo”.



Ana Cranes (Reprodução - Facebook) / Stef salviarain (Reprodução - Instagram) / Bruna Souza (Reprodução - Instagram)
A falta de representatividade negra na subcultura e o racismo, que por vezes acontece, pode estar relacionado a aquilo que Wilma Regina já levantou em sua pesquisa dos góticos paulistanos lá nos anos 2000. Em entrevistas anônimas coletadas pela pesquisadora, é possível notar a presença de falas preconceituosas em relação a pessoas mais pobres que se intitulam góticas, ressaltando o quanto o “estilo é caro de se manter e apenas pessoas mais abastadas teriam essa possibilidade”.
Segundo um estudo realizado pelo economista Marcelo Paixão em 2001, através de dados coletados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no censo de 2000, 45% dos pobres da região metropolitana de São Paulo eram negros. Dessa maneira, considerando a porcentagem levantada por Paixão e o estilo de vida caro que os góticos possuíam, os brancos seriam aqueles que, supostamente, mais teriam as “condições financeiras de fazer parte da comunidade”.
Para Ana Cranes, que está na comunidade desde os anos 90, o fato da subcultura ter surgido na Europa - em um país com uma população majoritariamente branca - também dificultou a introdução de pautas raciais na comunidade gótica brasileira. “Existia até uma percepção de que góticos teriam que ser pálidos e pessoas negras não tem palidez de forma natural. Mas isso pra mim foi mais um erro de interpretação estética. A maquiagem gótica tradicional não usa blush, apenas corretivo ou é nada mesmo, só base e pó. E isso numa época em que as pessoas saiam como se tivessem levado duas chineladas na cara era bem impactante. Recursos como blush e iluminador dão um aspecto de saudável e alegre e algumas pessoas confundiram a falta de blush com a obrigação de clarear o rosto”, opina.
Apesar disso, ela acredita que em relação à década de 90, a questão racial na subcultura teve um avanço significativo, já que essas discussões se tornaram mais fáceis por conta do acesso à internet. “Pessoas negras estão se encontrando na estética da subcultura. Adaptando seu tom de pele e seus cabelos a uma estética gótica, sem apagar suas próprias características étnicas”.
Mas por que essa estética obscura com raízes europeias ganhou força no Brasil? Ainda de acordo com a pesquisa de Wilma Regina, além da popularização do mito do vampiro, a piora da condição de vida e da saúde mental da população também contribuíram para uma adesão da juventude brasileira ao mundo gótico.
Não é à toa que o Brasil era chamado de “Década Perdida” nos anos 80, mesma época em que a subcultura nasceu na Inglaterra e se expandiu para território tupiniquim. De alguma maneira, a melancolia gótica conseguia traduzir os anseios da juventude, mesmo aquela separada do seu ponto de criação por um imenso oceano.

Promulgação da Constituição Federal de 1988 (Agência Brasil)
Apesar dos anos 80 terem sido ótimos para a democracia, com o fim da ditadura e crescimento de movimentos sociais, esse cenário econômico desagradável foi fruto de uma crise que se desencadeou na metade da ditadura por uma série de políticas internas e externas. Na época, os Estados Unidos aumentaram sua taxa de juros, a Organização dos Países Produtores de Petróleo (OPEP) aumentou os preços do petróleo em até doze vezes e o Brasil, tentando recuperar a economia desvalorizou o cruzeiro em uma tentativa falha de aumentar a exportação, apenas criando uma inflação descontrolada que se estendeu para os períodos democráticos.
Nos anos 90, apesar da qualidade de vida em relação a saneamento básico, expectativa de vida e mortalidade infantil terem tido dados positivos, a desigualdade social perdurou de acordo com a Síntese de Indicadores Sociais 2000 do IBGE. Em 1992, a diferença de renda entre os mais pobres e mais ricos era de R$1717. Ao longo da década, a discrepância cresceu cerca de R$553, chegando a R$2270 em 1999.
Com tantos problemas sociais perdurando, era natural que os jovens se encontrassem na comunidade gótica, que sempre teve um caráter de protesto e reivindicação, participando de protestos contra fome e pedindo o fim da violência, crescendo em cenários de desigualdade.
Em uma época em que a tecnologia tomava menos tempo da vida cotidiana, os locais de encontro nas cidades representavam uma enorme importância para as tribos urbanas. No contexto gótico brasileiro, bares como Madame Satã (atualmente Madame Underground Club) e a Galeria do Rock no centro de São Paulo eram um porto seguro onde os jovens conseguiam se encontrar e expressar sua autenticidade além dos preconceitos.
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Madame Satã (São Paulo Antiga) / Galeria do Rock (Paulo Igarashi)
Muitas bandas que se inspiravam no pós-punk britânico se apresentavam nesses bares, festas e encontros. Algumas delas deixavam de lado os covers e criavam seu próprio som, como as Mercenárias - fundada nos anos 80 - e a Plastique Noir dos anos 90.
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as Mercenárias (Divulgação) / Plastique Noir (Divulgação)
Com a chegada da era digital, foi mais simples para os góticos se conectarem uns com os outros. A primeira rede em que as pessoas poderiam interagir foi o mIRC, que tinha muitas restrições em relação às redes que conhecemos atualmente. Depois, surgiram grupos de e-mail como o Sépia Zine, que foi sucesso entre os anos de 98 e 99 e responsável por conectar góticos de diferentes estados brasileiros. Alguns anos depois vieram os fóruns e os fotologs, mas este último era responsável por espaços pessoais e não de conexão interpessoal.
Uma revolução aconteceu com a chegada do Orkut no Brasil. “Ele era muito melhor que o Facebook, pois tinha mais recursos de diagramação, o que tornava a escrita mais compreensível. E muita gente se conhecia pessoalmente. Existiam alguns grupos, mas poucos bombavam e meio que muita gente relevante da cena (dj's, produtores, músicos, apreciadores, formadores de opinião) participavam”, relata Ana Cranes sobre sua experiência da época. Ela aponta uma comunidade específica como importante na cena gótica brasileira: “o Góticos no Brasil, que era chamado de GnB. As mesmas pessoas que iam nas festas, faziam parte do grupo”.
O Facebook começou sua atividade com uma proposta de exclusividade, aceitando a criação de conta apenas por pessoas que eram convidadas. Esse sistema não chamou atenção de Ana, que só entrou na plataforma quando o acesso foi liberado a todos. Ao contrário do Orkut e dos fóruns, que prezavam por uma comunidade e um debate aberto, “o Instagram e o Facebook sempre puxaram mais para o discurso individual”, declara.


Sépia Zine (Carcasse) / Comunidade gótica no Orkut (Wilma Regina)
Com centenas de plataformas e uma expansão cada vez maior da internet, Ana reforça que as pessoas da subcultura se dispersaram na imensidão de códigos binários. “Existem dezenas de grupos, mas pouco ou nenhum debate. São grupos com milhares de participantes e zero debates. Até houve uma época em que havia um pouco mais de interação entre as pessoas, mas hoje é bem pouco. Não sei se as pessoas migraram pro TikTok ou Whatsapp”.
Analisando dados de pesquisa do Google através do Google Trends, é possível notar que o auge das buscas pela subcultura gótica na ferramenta de pesquisa foi em 2005, mesmo que o acesso a internet fosse mais restrito e difícil naquela época. O declínio nas buscas pode indicar uma tendência dos jovens de realizar suas buscas no Tiktok ao invés do tradicional buscador, já que na plataforma que ganhou popularidade na pandemia, a hashtag “gótica” possui mais de 160 mil vídeos vinculados ao tema. Já “gothic” e “goth” juntos ultrapassam os 7 milhões de publicações.
No Tiktok, são jovens de várias idades, gêneros, raças e regiões do Brasil falando sobre a subcultura. Eles expressam suas opiniões, falam sobre arte, mostram seu estilo e até fazem vídeos no estilo arrume-se comigo. Dessa forma, sentem-se livres para serem felizes e se comunicar sem medos dos padrões de comportamentos da sociedade.
Aquilo que era restrito a uma parcela da população paulistana começa a se democratizar e espalhar-se para outras pessoas com um acesso tão fácil à informação e pesquisa. Isso possibilita que longe dos grandes centros, amigos se reúnam e compartilhem as vivências góticas que, para muitos, é um estilo de vida.
Apesar da democratização que a internet possibilita, Ana Cranes acredita que também existe um lado complexo nesse compartilhamento de vivências da subcultura e criação de celebridades no meio. “Antigamente era mais fácil rebater as abobrinhas, mas era mais difícil levar informações. Sei que tem muita instangoth [góticas do instagram] que fala muita merda, mas também tem aparecido umas ‘minas’ bacanas que pesquisam antes de falar. Mas a busca por like e fama faz muita gente vazia se tornar celebridade no meio gótico”, opina.
O gótico, que surge e manifesta-se em variadas artes, se encontra na música. “Ser gótico é ter uma paixão e identificação pela música gótica e pelos elementos que ajudam a inspirar essas músicas. É uma jornada de enriquecimento artístico e cultural” ressalta Stef, que acumula mais de 13 mil inscritos no Youtube que compartilham a paixão pelo estilo de vida.
Com a facilidade do acesso a internet, também é possível observar um pouco de como a subcultura tem força ao redor do Brasil. Na cidade de Boa Vista, em Roraima - bem longe do grande centro paulistano - a Lost Lenore cria sons com inspirações em The Cure e no mundo literário de Edgar Allan Poe.

Lost Lenore (Divulgação)
O duo é formado por Bianka e Augusto, ambos apaixonados pela música e vivendo com a subcultura enraizada em suas veias. Para eles, não existia outra opção lógica a não ser montar uma banda gótica. “Tocar música gótica era uma obviedade vindo de nós, uma vez que ambos temos vivência dentro da subcultura, então queríamos fazer música para góticos também, trazendo toda nossa particularidade que são notáveis nas músicas”, comenta Augusto.
Através de músicas etéreas e emocionalmente densas, eles trazem a melancolia gótica a música e adicionam seu toque especial. Mas apesar de muitas bandas como a Lost Lenore existirem ao redor do país, Augusto acredita que muitos góticos brasileiros ainda preferem ouvir as tradicionais bandas europeias pelo histórico consolidado que a subcultura construiu lá. “Na Europa, o movimento surgiu e se moldou, resultando em um número significativamente maior de adeptos e bandas. No Brasil, percebe-se que tanto os góticos quanto os produtores do movimento têm uma preferência por bandas e artistas do velho continente”, comenta.
Ainda assim, essa realidade também tem se transformado com o avanço da internet, que ampliou os horizontes da cena nacional. “A internet também possibilitou que a gente aqui do sudeste compreendesse que a subcultura gótica nunca se limitou ao eixo Rio - SP. E temos uma leva de bandas muito boas do norte e nordeste”, afirma Ana Cranes.
Em relação ao preconceito contra a subcultura, Bruna acredita que antigamente ele era muito mais forte. Apesar de ser gótica desde 2023, a jovem ressalta que a discriminação que sofre por ser gótica e negra é mais forte na internet do que no dia a dia. “Na vida real as pessoas não se importam tanto, porque está todo mundo trabalhando e vivendo a própria vida”.
Já Stef ressalta que, além de ser gótico e usar o visual, existem outros fatores que podem contribuir para que alguém da comunidade sofra algum tipo de preconceito nos dias atuais. “Uma pessoa com modificações corporais vai ter mais chances de sofrer preconceito do que um gótico que só se monta visualmente para eventos. Tudo depende do seu visual, profissão ou de onde você mora. Acho importante destacar que muitos góticos podem sofrer agressões não apenas por serem góticos, mas muitas vezes de pessoas homofóbicas ou até mesmo intolerantes religiosos assumindo alguma ideia sem sentido sobre nós”. Para ela, a melhor forma de combater o preconceito é através da informação. “Compartilhar coisas verdadeiras sobre alternativos ajuda a diminuir o preconceito, pois algumas pessoas têm medo de nós sem nem saber o que somos”, conclui.
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Para sair ouvindo...
A ideologia da liberdade
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Surgindo nas camadas mais baixas da sociedade inglesa, o gótico sempre teve um claro histórico anticapitalista e, desde sua concepção, lutou contra desigualdades e injustiças, buscando incomodar aqueles em posições de poder ou os mais conservadores através de suas músicas, estética e atitudes.
O movimento também tem um caráter primordial de ser libertário, ou seja, foca na liberdade individual e na autonomia das decisões acima de todas as coisas. Eles não se importam com o que os outros pensam, fazem, acreditam ou o estilo de vida que outras pessoas possam escolher ter.
“A subcultura em si é laica e apartidária, mas possui valores progressistas e libertários. Libertário na definição antiga e não da apropriação do neoliberalismo. Não existe nenhum impedimento para que os indivíduos góticos professem seus dogmas políticos e religiosos”, afirma Ana Cranes, gótica a mais de três décadas. Entretanto, essa liberdade jamais pode ferir os direitos das outras pessoas. “Quando esses dogmas entram em conflito e a pessoa propaga o conservadorismo e o preconceito, ela no mínimo está sendo contraditória, talvez ela não tenha capacidade de compreender o que é proposto pela subcultura há quase 50 anos”, completa.
Essa proposta feita pela subcultura, comentada por Ana, é justamente a luta dos góticos que - desde os anos 80 lá no Reino Unido - buscam igualdade de classes e não se sentem confortáveis com a opressão do sistema nas vidas das pessoas marginalizadas. É claro que uma comunidade tão grande como a gótica não é perfeita, mas os góticos que levam a vivência a sério afirmam que o preconceito ou qualquer tipo de pensamento que oprima alguém não é bem-vindo no grupo.


Não há uma imposição explícita do posicionamento político que um gótico precisa ter para ser parte da subcultura, mas a maioria deles se alinham com ideais de esquerda, são socialistas ou anarquistas, pois são essas as ideologias que mais se aproximam dos valores fundamentais da comunidade, que sempre teve um aspecto subversivo e de classe.
Sobre essa questão política, Stef, que mantém um canal no Youtube e publica vídeos debatendo temas sobre a comunidade comenta: “Boa parte dos góticos que conheço são anarquistas, socialistas ou com algum outro posicionamento no espectro de esquerda. Algumas pessoas consideram que alguém de direita mais liberal também pode ser considerado gótico, mas isso é algo um pouco controverso”.
Em relação à religião, a subcultura é laica e, novamente trazendo o seu caráter libertário, não se importa com qual posicionamento religioso seus membros se alinham. Uns são religiosos e utilizam os símbolos - como o crucifixo - de forma genuína, já outros são mais críticos em relação às crenças e podem usar os elementos sagrados de maneira subversiva.
“A subcultura possui um histórico político muito explícito. O gótico sempre foi subversivo, sempre acolheu diversas minorias e não só isso, existe um aspecto de classe e de anticapitalismo no gótico”, conclui Stef.
Entre demonias e corsets, a vivência do gótico através do estilo
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Apesar da subcultura gótica ser focada na arte e política, é necessário reconhecer a importância do estilo visual que os membros dessa comunidade utilizam.
É claro que não é só fazer uma maquiagem gótica tradicional e usar corpetes pretos que automaticamente alguém se torna gótico, mas é através dessa expressão visual que a tribo urbana dá seu recado ao mundo e se torna única em uma sociedade tão igual. Pelo estilo, os membros de uma comunidade reconhecem-se uns aos outros e transmitem sua mensagem para o sistema.
“O visual gótico é como um recado para o mundo, uma mensagem anticonformista. Além disso, poder se expressar sem se preocupar com camuflagens ou padrões é algo libertador, e honestamente, muito divertido”, opina a youtuber gótica Stef.
Além de expressão social e política, o visual gótico também exige criatividade e originalidade para mesclar os elementos da estética e criar um look incrível. Ana Cranes, que é gótica desde os anos 90, comenta que no passado era ainda mais complexo encontrar roupas no estilo gótico aqui no Brasil.
“Nos anos 90 e na primeira década de 2000 usar visual na rua era mais do que uma expressão pessoal. Era enfrentar uma sociedade que oprimia qualquer pessoa que se vestia de forma diferente. No nosso caso não existia batons, esmaltes e sombras pretas. E nem roupas totalmente pretas. Era um exercício de criatividade e caça por itens”, comenta.
A popularização da internet e de estilos alternativos facilitou o acesso a itens de vestuário e maquiagem que constroem o visual gótico. Para Ana: “Você pode comprar esmalte preto junto com as compras do mês. Consegue comprar roupas de pequenos, médios e até grandes produtores, seja em grandes magazines ou em sites chineses”.
É no estilo que todas as características góticas do cinema, da música, da literatura e - até mesmo da arquitetura - vão se refletir.
A melancolia, a obscuridade e a tristeza ficam por conta da tonalidade preta, presente na roupa da maior parte dos góticos, geralmente da cabeça aos pés. Historicamente, o preto sempre foi associado a coisas ruins e ao luto. Dessa maneira, usar um tom tão sóbrio em uma época que a moda “Disco” exigia cores vibrantes e roupas extravagantes era subversivo.
Outra característica que se reflete na vestimenta gótica é a androginia. Roupas que são consideradas - para algumas pessoas - femininas são usadas independente do gênero, como saias longas, grandes botas de salto e tecido de renda. Além disso, a maquiagem com batom e muito delineador preto também é usada independente do alinhamento de gênero do gótico. Esse aspecto também tem sua importância no quesito quebrar paradigmas e chocar, especialmente os conservadores.
Além disso, acessórios que dão um estilo mais sensual ao look, como corsets, meias arrastão, chokers, cinta-liga e meias ¾ também são muito utilizados.
Mas apesar de terem características gerais, o estilo gótico pode variar, já que existem várias vertentes estéticas e culturais dentro da subcultura.
Os góticos não são obrigados a se enquadrarem em alguma delas, já que são apenas maneiras diferentes de viver a comunidade e se expressar como parte dela, mas elas existem e trazem mais diversidade para a subcultura.
“Vertentes em geral são uma forma de se inspirar e encontrar nichos na subcultura. É só isso. Eu não me prendo a nenhuma. Tudo depende do dia e da vibe”, afirma Stef.
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Algumas vertentes do estilo gótico
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VAMPIRE GOTH
Através de olhos vermelhos sangue e presas afiadas é possível enxergar a alma do vampire goth. Seu coração sempre foi pertencente ao mito do vampiro, usando obras literárias e filmográficas do gênero como inspiração primordial para suas vestimentas. Os tecidos luxuosos que recaem sobre seu corpo, como a renda, o veludo e o couro, trazem um ar aristocrático à sua estética. O batom vermelho vinho nos lábios quase pode ser confundido com sangue e o colar de crucifixo brilhando ao peito misturado a maquiagem extremamente pálida contrastam em sua figura.
(Divulgação de A Família Addams)
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(httxp_isa no Instagram)
Ser gótico e os góticos da era digital
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Por um lado, a era digital e as redes sociais contribuíram para que a cultura se expandisse e fosse mais democratizada, permitindo que góticos de todas as idades, classes sociais e lugares do Brasil pudessem se conectar e conhecer mais sobre a subcultura. Já por outro, o algoritmo trouxe muita desinformação acerca da cultura, reforçando uma competição estética por quem performa mais “goticicidade”, deturpação dos valores políticos com góticos que afirmam ser de direita ou possuem falas conservadoras e a mercantilização da cultura.
Originalmente anticapitalista, o gótico foi apropriado pela indústria da moda fast fashion, que percebeu como as roupas são necessárias para, além do protesto e disruptividade de ter um estilo fora do comum, despertar a sensação de pertencimento daqueles que participam da subcultura. Através do marketing e da venda de roupas para o nicho, as pessoas que querem pertencer a tribo são incentivadas a consumir desenfreadamente, principalmente de lojas com produção massificada por serem mais acessíveis, mesmo que de baixa qualidade. A youtuber gótica Stef ressalta que essa comercialização da subcultura gerou um consumismo assustador.
Muitos performam a estética gótica sem o envolvimento com a subcultura e isso não é um problema grandioso, mas para se considerar e ser gótico, é preciso ir além do visual, que apesar de ter sua importância, não é o protagonista.
Seja quando os godos lutaram contra o Império Romano, quando as catedrais da Idade Média passaram a quebrar padrões estéticos clássicos ou quando os jovens britânicos começaram a consumir o pós-punk e se organizar em uma subcultura para protestar contra as políticas governamentais conservadoras, a palavra gótico sempre foi sinônimo de luta e resistência política. O gótico como tribo urbana vai além de usar um delineado preto ou ser melancólico. Ele incomoda e é uma vivência diária.
E a base dessa vivência é a música, considerada o gênesis e o principal pilar da comunidade até hoje. “Existe uma diferença entre apreciar cultura gótica e ser gótico. Você pode amar arte gótica, a literatura, e outros pontos, mas se você não curtir música gótica, você não é gótico. Sendo uma subcultura com base em música, esse é o aspecto mais importante”, conclui Stef.

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